segunda-feira, 26 de maio de 2008

O sotaque das mineiras

O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar.
Afinal, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais,
como é que o falar, sensual e lindo das moças de Minas ficou de fora?
Porque, Deus, que sotaque! Mineira devia nascer com tarja preta
avisando: 'ouvi-la faz mal à saúde'. Se uma mineira, falando mansinho,
me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de
perguntar: 'só isso?'. Assino, achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez
quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo
sotaque.
Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.. Preferem,
sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho. Não dizem: pode
parar, dizem: 'pó parar' Não dizem: onde eu estou?, dizem: 'onde queu
tô.'
Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e
levianamente, que os mineiros vivem - lingüisticamente falando -
apenas de uais, trens e sôs.
Digo-lhes que não. Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal
ou qual atividade. Fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que
seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô. Se der
no couro - metaforicamente falando, claro - ele é bom de serviço. Faz
sentido...
Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se
encontram, uma delas há de perguntar pra outra: 'cê tá boa?' Para mim,
isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa é
desnecessário. ...
Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher
casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: - Mexe com
isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc)
O verbo 'mexer', para os mineiros, tem os mais amplos significados.
Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você
mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém
consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai
chegar a tempo, você liga e diz: '- Aqui, não vou dar conta de chegar
na hora, não, sô.'
Esse 'aqui' é outra delícia que só tem aqui. É antecedente
obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais
usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita
atenção: é uma forma de dizer 'olá, me escutem, por favor'. É a última
instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.
Mineiras não dizem 'apaixonado por'. Dizem, sabe-se lá por que,'apaixonado com'.
Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora: 'Ah, eu
apaixonei com ele...'. Ou: 'sou doida com ele' (ele, no caso, pode ser
você, um carro, um cachorro).
Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com
todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram.
São barradas pelas montanhas.
Por exemplo: em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar,
vai dizer: - 'Eu preciso de ir.'
Onde os mineiros arrumaram esse 'de', aí no meio, é uma boa
pergunta... Só não me perguntem!
Mas que ele existe, existe. Asseguro que sim, com escritura lavrada em cartório.
No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um tanto
de coisa. O supermercado não estará lotado, ele terá um tanto de
gente. Se a fila do caixa não anda, é porque está agarrando lá na
frente. Entendeu? Agarrar é agarrar, ora!
Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com
pena,suspirará :
'- Ai, gente, que dó.'
É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas
mineiras... Não vem caçar confusão pro meu lado! Porque, devo dizer,
mineiro não arruma briga, mineiro 'caça confusão'. Se você quiser
dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer
entendido, que ele 'vive caçando confusão'.
Ah, e tem o 'Capaz...'
Se você propõe algo a uma mineira, ela diz: 'capaz' !!! Vocês já
ouviram esse 'capaz'?
É lindo. Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer 'ce acha que eu faço
isso'!? com algumas toneladas de
ironia.. Se você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: 'ô dó
dôcê'. Entendeu? Não? Deixa para lá.
É parecido com o 'nem...'.
Já ouviu o 'nem...'?
Completo ele fica: '- Ah, nem....' O que significa? Significa,
amigo leitor, que a mineira que o pronunciou
não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Você
diz: 'Meu amor, cê anima de comer um tropeiro no Mineirão?'.
Resposta: 'nem...'
Ainda não entendeu? Uai, nem é nem. Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?
Preciso confessar algo: minha inclinação é para perdoar, com louvor,
os deslizes vocabulares das mineiras. Aliás, deslizes nada. Só porque
aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a
razão.
Se você, em conversa, falar: 'Ah, fui lá comprar umas coisas...'.. ..
- Que' s coisa? - ela retrucará.
O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o 'que'!
Ouvi de uma menina culta um 'pelas metade', no lugar de 'pela metade'.
E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará :
- Ele pôs a culpa 'ni mim'.
A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas... Ontem, uma
senhora docemente me consolou: 'preocupa não, bobo!'..
E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras. nem se
espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: 'não se preocupe', ou
algo assim.
Fórmula mineira é sintética. e diz tudo.
Até o tchau, em Minas, é personalizado. Ninguém diz tchau, pura e
simplesmente. Aqui se diz: 'tchau pro cê', 'tchau pro cês'.
É útil deixar claro o destinatário do tchau...

Carlos Drummond de Andrade

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