quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Geni da vez

No dia 22 de outubro, o machismo à brasileira fez mais uma vítima. A Geni da vez atende pelo nome de Geisy Arruda. Pelo fato de ter usado uma saia curta, a jovem estudante de turismo foi hostilizada por colegas, na Universidade Bandeirante (Uniban), em São Bernardo do Campo (SP). A aluna foi obrigada a vestir um jaleco de professor e teve que sair da escola escoltada por policiais porque os estudantes ameaçaram linchá-la.
Tal comportamento furioso se valeu da crença de que o traje da estudante afetaria de forma negativa a reputação moral daquela instituição de ensino, pois o estilo em questão apimentaria de forma pornográfica o ambiente acadêmico que deve ser sóbrio e respeitoso. Com receio de perder vários “alunos-clientes” e aderindo à revolta dos universitários, os dirigentes da Uniban, de forma desastrosa, resolveram também repudiar a estudante, chegando ao cúmulo de expulsá-la da escola. Pressionada pela opinião pública, a cúpula voltou atrás na decisão, mas a brutalidade do episódio já havia deixado profundas feridas.
Pelas imagens na Internet, percebemos que a Uniban teve o seu dia de Coliseu Romano na época dos seus espetáculos medievais sangrentos. Jogada à cova dos leões, Geisy foi inúmeras vezes chamada de “puta”, por um coro raivoso. Este episódio me fez lembrar o refrão da música Geni e o Zepelim, no qual Chico Buarque critica o puritanismo hipócrita e o utilitarismo vulgar que regem de forma conservadora e preconceituosa a nossa etiqueta sexual: “Joga pedra na Geni/Joga pedra na Geni/Ela é feita pra apanhar/Ela é boa de cuspir/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni”. Humilhada, Geisy foi a Geni do mundo real.
Antes de contar com o aval coletivo, suspeita-se que a agressividade presente naquela forma de tratamento começou por conta de alguns “tarados de plantão” que ficaram desconcertados por não terem suas expectativas sexistas atendidas pela garota. Considerada bonita e atraente, Geisy, ao ser enquadrada no perfil da “mulher fatal”, foi compreendida dentro do imaginário falocêntrico não como ser humano, mas como apetitosa fêmea (forma animalesca) e, portanto, um objeto de caça que deve ser conquistado a qualquer custo. Triste é saber que tal formatação reforça a tese arcaica de que uma mulher, quando opta em usar uma minissaia, só pode se configurar como amante sedutora, já que companheiras afetuosas e mães ajuizadas devem ser recatadas, conforme manda o figurino reacionário.
Geisy também foi vítima da permanente naturalização da subalternidade feminina impetrada pela doxa masculina e patriarcal, com base na pretensa inferioridade inata do chamado “sexo frágil”. Articulados em uma estratégia visivelmente comprometida em imbecilizar e reificar a mulher, sendo esta reduzida a mero objeto de prazer, os perseguidores da estudante, na verdade, quiseram submeter a sua inteligência, colocando-a à sombra de um talento físico. Ao inviabilizarem a permanência de Geisy na Uniban, os carrascos engrossaram a lista daqueles que historicamente se empenham em interditar a trajetória feminina no universo intelectual.
Esse tipo de ocorrência em que uma horda age de forma selvagem por contaminação de uma ou outra pessoa de personalidade perversa ou patológica atende pelo nome de “comportamento de manada”. Trata-se de situações em que indivíduos em grupo reagem da mesma forma, sem que haja para tanto uma reflexão apurada, um juízo crítico elaborado. Por isso, tal conduta de massa traz efeitos nocivos que impedem o exercício do debate e estimulam a prática do combate entre as pessoas. Triunfa, assim, o pensamento único, inteligentemente criticado pelo dramaturgo Nélson Rodrigues, em sua célebre frase: “toda unanimidade é burra”. Além da constatação desse propósito alienador, o que aconteceu na Uniban traz à tona a “banalidade do mal” denunciada pela filósofa Hannah Arendt como origem do totalitarismo. A atitude violenta da Uniban em relação a Geisy focaliza, a um só tempo, o imperativo da ordem e disciplina, e o desejo de reprimir condutas tidas como “desviantes”, valendo-se de prerrogativas tão caras às organizações de cunho fascista que aspiram a ser morais.
O horrendo episódio traz à mente o interessante filme A onda (1981). Numa escola americana, o professor Burt Ross resolve fazer uma experiência com os alunos para explicar como se deu o nazismo. O historiador elege uma turma como a melhor do colégio. Esta, envaidecida, passa a se comportar como se, de fato, pertencesse a uma “raça dominante”. Com o slogan “Poder, Disciplina e Superioridade”, o grupo passa a comandar os demais estudantes, numa operação clássica de governo concentrado em uma causa mítica irracional. Um aluno que se opôs à ideologia dominante recebeu fortes ameaças até ser excluído. Com o alerta dado por um casal de estudantes sobre as graves consequências do experimento pedagógico, o professor teve que desmascarar os fundamentos presentes naquela onda autoritária, proferindo os seguintes dizeres: “Vocês trocaram sua liberdade pelo luxo de se sentirem superiores. Todos vocês teriam sido bons nazi-fascistas. Certamente iriam vestir uma farda, virar a cabeça e permitir que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos. O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós”.
Conduta fundamentalista semelhante ocorreu no fuzilamento moral sofrido por Geisy Arruda, na Uniban. Impressiona como o preconceito, a violência e a ira podem se espalhar rapidamente, misturando ódio e deboche em uma operação de empoderamento totalitário aberrante. São pessoas que ignoram o bom senso para se sentirem superiores. Agindo assim, condenam o outro pela aparência, numa atitude tacanha e bárbara de fazer justiça com as próprias mãos. Sem dúvida, uma prática demasiadamente desumana.
Marcos Fabrício Lopes da Silva
Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela
Faculdade de Letras da UFMG.

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